terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Os Valentes

Clara Pinto Correia escreveu muito, e bem! Foi bióloga interventiva e lutadora, figura pública idolatrada até que a sociedade lhe "fez a folha" e deu-lhe o prémio do esquecimento, limpando tudo o que de bom tinha realizado. Um erro, se aconteceu, bastou para que os virtuosos a condenassem definitivamente, sem apelo nem defesa.

Morreu hoje, com 65 anos. Já recebeu os elogios fúnebres de meio mundo. O costume ...

Por aqui fica um excerto de um conto, de um dos muitos livros que por cá permanecem. Todos os que escreveu tiveram lugar na "estante" mas há vários que acompanharam a filha e já devem ter feito as delícias dos netos. "Adeus, Princesa!"

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"Era uma aldeia muito pequenina, ao fundo de um caminho de terra muito estreitinho, por onde entrava vida, depois de atravessarmos os eucaliptos acabados de plantar. Não havia nenhuma placa a sinalizar-lhe a existência. Nem sequer havia uma bolinha no mapa. Era ali, pronto. No meio de uma planície com sobreiros dispersos e com restolho malhado de giestas e de estevas estava um rebanho espalhado pela encosta que ficava à nossa direita, e a dois ou três metros desses rebanho estava um pastor em pé, com o cajado fincado no chão, e as mãos fincadas no cajado, com um cão preto sentado ao lado, como nas imagens dos pastores que nós agora vemos nos livros que nos falam de coisas que já não existem.

A aldeia só tinha uma rua. Ao cimo da rua, acabava a estrada de terra, e abria-se um terreiro mais ou menos circular, para onde dava o alpendre do Café Saudade. Nesse dia, o Café Saudade tinha a toda a volta mesas improvisadas por grades de cerveja com portas velhas estendidas por cima, ladeadas por bancos construídos com tijolos e tábuas. E também se tinham posto ali algumas cadeiras de plástico, umas brancas e outras verdes. E estavam várias pessoas atarefadas à volta das grelhas de carvão montadas à frente das casas mais próximas. E toda a gente fazia tudo com muita calma, mas sentia-se no vento do fim da tarde uma excitação difusa, imprecisa, uma antecipação de coisas raras, que ia e vinha, como os voos rasos das andorinhas. Era a excitação de esse dia ser sábado, e de esse sábado ser o sábado da festa anual que aquela aldeia organiza sempre que o Verão começa a desandar para o fim. 

Este ano era ano de pouca sorte, porque este sábado especial estava a ameaçar chuva. Lá mais para a noite, o Duo Fadista ia subir para as traseiras da camioneta estacionada ao lado do terreiro, que já estava toda equipada para o grande momento com dois microfones e um amplificador. E, nessa altura, ia animar-se o baile ao ar livre diante do Café Saudade, debaixo de duas fiadas de lâmpadas suspensas de telheiro a telheiro. E, enquanto durasse o baile, iam beber-se muitas cervejas, e outros tantos bagaços. E haveria frango no churrasco. E também haveria coiratos e torresmos. E, a certa altura, leiloava-se um leitão. E, logo a seguir, era a dança da rosa. (...)"

Contos
Clara Pinto Correia
Relógio d'Água (2005)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Limpeza

Vivemos tempos difíceis! 

Não há nada pior para iniciar qualquer pretenso texto do que escolher um "lugar comum". E, no entanto, tem pleno cabimento utilizá-lo, quando se olha o que vai pelo mundo. Das guerras que permanecem, da Ucrânia a Gaza, da Somália à Venezuela e muitos outros sítios que são esquecidos ou devorados, rapidamente, pela espuma dos dias.

Conversações, reuniões, cimeiras, encontros, telefonemas, mensagens, "bocas", avisos, ameaças, conversas da treta, discursos profundos, opiniões certeiras, "caganeirices" chiquérrimas, falinhas mansas, gritos inflamados, tudo cheio de certezas e ditos para "inglês" ver e "portuga" crer.

Por vezes chega a parecer que regressámos à "outra senhora", com notícias, comentários e análises parciais, que nos despejam tudo e o seu contrário, fazendo-nos sentir mentecaptos e completamente desprovidos de um mínimo de senso ou de inteligência.

Valha-nos o Youtube e a música que nos disponibiliza, à borla, sem comentários e deliciosa. Lufada de ar fresco que distrai, revigora e limpa a cabeça.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Restauração


A pergunta impõe-se: e se, de repente, a areia que o mar levou, for restaurada e voltar ao seu lugar habitual?

A resposta é: estaremos a chegar ao Verão e a preparar-nos para os banhos costumeiros.

domingo, 30 de novembro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) AS MENINAS E OS MENINOS

A casa da Avó. A casa dos avós.

Uma recordação que se ia tornando nebulosa. No entanto, não se esbatia totalmente. A casa onde, em pequenos, o irmão e ela passavam parte dos dias de Verão.

Quatro cadeiras à roda de uma mesa. Às vezes cinco, ou seis. Era o princípio das lembranças.

Mobília velha. Muito. De pinho com caruncho a roer, sempre a roer.

"Não haverá nada capaz de dar cabo desta bicharada?!"

As cadeiras e as mesas dir-se-iam esquecidas, no meio da cozinha. Passavam-nas, às vezes, com um esfregão embebido em azeite. Deixavam-se secar. Era ali que os avós se sentavam a comer. Eles também, quando lá estavam.

Café da manhã, almoço, jantar. Horários incertos porque não se tinha fome ou por se dar prioridade a galinhas, coelhos e porcos. Ou,

"Vou primeiro dar uma volta ao palheiro, a ver se há alguma novidade ..."

"E eu ainda vou lá acima. Tenho um canteiro de alhos-porros para sachar!"

Mais isto. Mais aquilo.

Comia-se, ou não se comia?

Quando lhe parecia que já era tempo, ela chamava o irmão,

"Duarte, vamos pôr a mesa!"

E logo a Avó,

"Deixa-o, que está entretido!..."

Pusesse ela a mesa. Toalha de algodão aos quadrados. Pratos, talheres, os copos.

Preferia as toalhas claras. Brancas. As da Avó, porém, andavam todas por tons escuros. Castanhos, azuis.

"Sujam-se menos ..."

Que ideia! Sujavam-se tanto quanto as outras, só que não se notava.

Pois era, a casa dos avós não tinha idade.

Casa de tectos altos, em madeira. Paredes rugosas feitas de cal, areia e cascalho. Enegreciam com o acender do fogão e dos fumeiros. Embranqueciam com um balde de cal e algumas pinceladas. Outra vez a cal!

Não. A casa não se adiantara, nem mesmo naqueles anos em que todos se batiam contra os atrasos. Em que se levava tudo por diante. Liberdade recente, a do 25 de Abril.

E a Avó, adiantara-se?

Bem ...

Antes e depois de setenta e quatro nunca usou calças nem blusas sem mangas. Continuou a vestir-se e a adornar-se como se vestem e adornam as mulheres no campo. Por dentro, contudo, diferente das outras.

Dizia de si própria

"Sou brava a dormir!"

Mais. Garantiam os conhecidos que também o era acordada.

"Ora! ... Faço o que tem de ser feito."

E dizia o que, na sua opinião, devia ser dito.(...)"

Novelas ao Vento
Filomena Marona Beja
Parsifal (2023)

terça-feira, 25 de novembro de 2025

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Correio

Cada vez mais vai rareando o correio colocado na caixa, obrigatória, que "vive" junto ao portãozinho da entrada da casa há quase meio século. A chave ainda funciona e a cor, verde, mantém-se não já com a tinta inicial na totalidade, mas ainda com alguns resquícios das primeiras pinceladas que obteve.

O ritual de pegar na chave, abrir a portinhola e espreitar para dentro repete-se todos os dias úteis, ainda que, na maior parte deles, os passos se revelem inúteis.

Hoje foi diferente! Três cartas, pasme-se! 

A primeira, da Junta de Freguesia, trazia o convite para o convívio natalício dos fregueses idosos; a segunda avisava que o débito do seguro vai acontecer no próximo mês; a terceira, era visível, trazia importância colada e bem vincada. Tinha como remetente o Ministério da Administração Interna e não era previsível que fosse algum chamamento da Ministra para outro almoço convivial.

A (des)agradável surpresa empertigou-se e ditou a sua lei: comunicava uma infracção acontecida em 03.08.2024, por violação do limite de velocidade estabelecido no local "Xis", bem bonito, por sinal. Na Barquinha, com o Tejo a fazer companhia pela esquerda, estaria, decerto à direita, o aparelhinho que me caçou sem contemplações.

Demorou mais de um ano, mas chegou. A lei é para se cumprir e os infractores (todos?) são penalizados. Já agendei o pagamento para o mês que vem, aproveitando o prazo de 15 dias que, amavelmente, me foi concedido.

domingo, 23 de novembro de 2025

Comemorações

Com o aproximar das "comemorações oficiais" dos 50 anos do 25 de Novembro, muita gente tem botado faladura e uma grande maioria não sabe o que diz, ou porque ainda não tinha nascido ou andava de cueiros, ou porque lê uma pseudo-história enviesada e parcial, que pretende justificar, aos olhos das novas gerações, o que fizeram ou não fizeram algumas figuras (e figurões) que hoje pretendem a primeira fila ou, para os que já desapareceram, se envidam esforços no sentido de os colocar num centro, fictício, do "teatro das operações".

No Expresso da passada sexta-feira e no Público de hoje, Sousa e Castro, antigo Capitão e actual Coronel na reserva, encontram-se duas excelentes entrevistas de quem bem sabe do que fala e não tem papas na língua para analisar 1975, com os olhos de quem o viveu por dentro e sabe o que diz.

Apenas alguns excertos "roubados" às entrevistas publicadas, para figurarem no "arquivo" e certificarem aos vindouros que, a maioria das vezes, nem tudo o que parece, é.

Expresso: "Tentar fazer uma equivalência em termos de importância histórica e de postura do Estado entre uma revolução que derruba uma ditadura e os acontecimentos de 25 de Novembro é absurdo. No 25 de Abril muda tudo, enquanto a 25 de Novembro quase tudo ficou igual, do ponto de vista do poder. Manteve-se o Presidente da República, o primeiro-ministro e o Governo, à exceção de alguns ministros. Os acontecimentos do 25 de Novembro são apenas uma consequência do 25 de Abril. Pôr estas datas ao mesmo nível é a última coisa que eu esperaria ver. É uma tentativa muito serôdia de reescrita da História por parte deste Governo. Uma jogada política, para não dizer pior."

"Obviamente, não. Para alguém que participou na revolução que deu ao povo português a liberdade, ver uns "marrecos" dizerem que há coisas iguais ou até melhores do que o 25 de Abril dá uma revolta profunda."

" A meu ver, o general Costa Gomes é a pessoa mais injustamente esquecida da História moderna portuguesa. Foi o general mais brilhante que Portugal teve no século XX e foi ele que segurou todas as convulsões, desde o golpe miserável de Spínola a 11 de Março até à gestão de toda a crise do PREC e dos governos gonçalvistas. No dia 25 de Novembro convocou uma reunião em permanência do Conselho da Revolução logo que surgiram as primeiras notícias da movimentação dos paraquedistas e, à margem dessa reunião, ia fazendo os seus contactos. Sei que chamou o Álvaro Cunhal e deu-lhe a entender: "Esteja quietinho, porque não tem qualquer hipótese de levar a sua à frente." E o PCP mandou recuar. Costa Gomes foi a personagem mais decisiva do 25 de Novembro, a par de Melo Antunes, que escreveu o "Documento dos Nove". E até ao fim da vida tentarei honrar a memória desses dois homens." 

Público: "Na altura tivemos de lidar com o CDS, que era o partido legal mais à direita. Mas o CDS tinha gente civilizada e culta na sua liderança. Está a ver o Freitas do Amaral, o Adelino Amaro da Costa ou o Francisco Lucas Pires a reescreverem a História de Portugal? Está a vê-los a dizer: não, 0 25 de Abril não foi uma revolução, a revolução foi a 25 de Novembro? Não estou a vê-los. Hoje temo a extrema-direita institucional, que é o Ventura, do Chega, e o Nuno Melo, do CDS. O Ventura é um aventureiro político, um populista, um tipo sem cultura e sem ideias. O Melo é um político medíocre, que se deixou arrastar pelo Ventura para esta ideia de se comemorar o 25 de Novembro. O Luís Montenegro, e vou dizer isto com palavras claras, é uma pessoa muito ignorante. Com pouca cultura, que não sabe nada de história. Por isso, foi na onda. É a ironia da História."

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Vícios

Alguns dias de ausência, não que faltem assuntos mas apenas porque "outros valores mais altos se alevantam", como disse o nosso Camões. Por vezes, também a paciência se ausenta e a vontade suspira por alguns momentos de descanso e meditação. 

O pouco tempo livre (ser reformado dá muito trabalho) tem sido aproveitado para dar uma nova (e melhor, espero) organização aos selos, de forma a que, se aparecer alguém que evite que eles sejam "mergulhados" no camião que há-de "limpar o lixo" existente cá por casa, perceba alguma coisa do que por ali está. A filatelia já teve os seus tempos áureos e o selo é, cada vez mais, um "utensílio" arcaico, em vias de extinção.

Estamos em mudança constante e só alguns "tontos" ainda vão achando que vale a pena preservar alguns vícios ...

Voltando ao tempo livre, aguarda-se que a IA altere a duração dos dias e possibilite espaço temporal que permita ver e ouvir, atentamente, o que se vai passando pelo mundo. Será? Ou já estarei a delirar?

As guerras mantêm-se, o homem da melena continua a dizer bacoradas e a ser ouvido; o seu "imitador portuga" grita, berra e barafusta como se estivesse na tasca e fosse o único bêbado ainda em condições de debitar asneiras; o nosso embaixador do futebol transferiu-se para os negócios estrangeiros árabes e foi jantar à Casa Branca; as sondagens dos resultados das presidenciais servem todos os gostos e interesses e são de um rigor acima de qualquer suspeita.

O vício de ler continua mas os livros, pelo menos os que aqui "moram", são escritos por mão e pensamento humano. Até quando?

sábado, 15 de novembro de 2025

Dança

A arte e o humor de António, no Expresso desta semana, dá-nos conta de que, pelo andar da carruagem, todos aprenderemos a dançar a valsa da melena. Daí a necessidade de fazer um grande salão na Casa Branca, para que toda a gente lá caiba. Ou será apenas a gente importante?